Esta Nossa Vida de Artista

 Por Rodrigo Hilário e Marina Amazonas  

Transexuais e travestis lutam para mostrar que talento não é documento


Rogeria 7 O Musical
Rogéria em 7 - O Musical
Persona era a máscara que os atores de teatro na Grécia Antiga usavam para ficar parecidos com o personagem interpretado. Com o tempo, passou a significar também o papel social vivido por um ator. Entre os dois conceitos, transitam artistas unidas pelas próprias diferenças. No palco aberto ou no anonimato das coxias, Rogérias, Janes, Leandras, Marias Claras, Renatas, Cláudias e tantas outras personagens femininas buscam o reconhecimento ou a consolidação de seu papel como artista.


Mulheres, travestis ou transexuais, cada uma vive sua persona, artística ou social. Como entrave, a aceitação do grande juiz, a sociedade. “O artista não tem que ‘se achar’, ele tem que ‘ser’. E quem o julga é o público”, decreta Rogéria, maquiadora, atriz, cantora, coreógrafa, 68 anos, travesti desde menina.

Uma artista consagrada, primeiro nos camarins da extinta TV Rio – “Meu Actor’s Studio”, brinca. Maquiando estrelas como Dalva de Oliveira, Elis Regina, Fernanda Montenegro, ela sempre ouviu dizer que seu lugar era no palco. Um dia, subiu e não desceu mais. Fez teatro, cinema, encantou Paris e ganhou um dos principais prêmios de teatro do Brasil, o Mambembe de Melhor Atriz, pela peça O Desembestado, de Aderbal Freire-Filho, em 1980.

Em outro extremo, a cantora Renata Peron, travesti, percorre as ruas de São Paulo vendendo DVDs de seu show em homenagem ao centenário de Noel Rosa ou conscientizando frequentadores da noite sobre diversidade e igualdade de direitos. Entre uma persona e outra, monta espetáculos para poder honrar as contas.

“Difícil é encarar a humilhação. São 50 reais por duas horas de show. Isso quando a casa me aceita”, diz Renata, 34 anos, paraibana de João Pessoa. Onze anos atrás, veio para a cidade grande à procura de sucesso. Encontrou mais preconceito. “Aceitar cara feia de ignorante é fácil. De gente esclarecida, confesso que não entendo.”

Com o poder de absolver e condenar, o público é o espelho da sociedade. “Somos produto de uma cultura judaico-cristã, machista. É uma dicotomia, do bom e do mau, do normal e do anormal”, diz Paulo Reis, pesquisador na área de educação, com foco na construção de gêneros, na Unicamp.

Renata Peron Conta e Canta Noel
Renata Peron interpreta Noel Rosa

O lá e o aqui

Entre o reconhecimento conquistado por Rogéria e a busca de Renata, há Maria Clara Spinelli. Levada ao palco pela dança e, depois, pelo teatro, estreou no cinema em 2009, no filme Quanto Dura o Amor, de Roberto Moreira, no qual vive Suzana – uma advogada transexual que se envolve com um colega de profissão e se vê obrigada a revelar sua história.

Por sua interpretação, repleta de referências pessoais, como as fotos de Suzana ainda menino, que são da própria Maria Clara, ganhou três vezes o prêmio de Melhor Atriz, em festivais no Brasil (Paulínia), em Mônaco e nos Estados Unidos.

Parece a consagração, mas para Maria Clara foi apenas o começo. “Prêmios são importantes, mas o real retorno é mais trabalho. Todo mundo elogia meu trabalho, diz que vai me convidar para novos projetos, mas meu telefone não toca.”

Maria Clara Spinelli Quanto Dura o Amor
Maria Clara Spinelli em "Quanto Dura o Amor"

Em sua trincheira, Renata Peron esforça-se para aprovar projetos em editais públicos e tenta driblar o preconceito de produtores culturais. “Já enviei material sem imagem minha. De cara, dizem que o produto é bom. Mas quando me veem dão uma desculpa qualquer.” A cantora também foi censurada em um reality show. “Todos os classificados foram ao ar, menos eu. Se isso não é intolerância, não sei o que é.”

Na tentativa de escancarar o desrespeito, Renata postou um vídeo de seu teste no YouTube. “Como não sou famosa, não repercutiu. Acho que sou uma fênix. Amigas minhas, por muito menos, já foram para a rua se prostituir. Não as julgo, mas prefiro seguir em busca do reconhecimento do meu talento”, desabafa, confiante em si mesma.

Cláudia Wonder, transexual ícone do underground, que morreu no fim de 2010, sofreu o mesmo. Sua vida foi contada no documentário Meu Amigo Cláudia, de Dácio Pinheiro. No filme, ela conta ter feito uma apresentação ao vivo, num canal de TV, onde cantou e dançou. “No dia seguinte, o programa foi reprisado, mas o bloco em que ela aparecia foi cortado”, relembra o pesquisador Paulo Reis.


Claudia Wonder Funky Disco Fashion
Cláudia Wonder em "Funky Disco Fashion"

O martírio de produzir

Essa mesma angústia é vivida pela atriz Leandra Leal, que estreia na direção de um longa-metragem com o documentário musical Divinas Divas, em fase de produção. Inicialmente previsto para estrear no segundo semestre de 2011, só deverá ser exibido um ano mais tarde. “Meu filme não é sobre travestis. É sobre vanguarda, liberdade, entrega à arte, expressadas por travestis. Está sendo difícil captar recursos, por puro preconceito. Os investidores não querem associar sua imagem a elas.”

Leandra é neta de Américo Leal, que deixou o Rio de Janeiro ouriçado nos anos 1960, com os primeiros espetáculos protagonizados por travestis, em plena ditadura militar. Foi no Teatro Rival – primeira casa a abrir as portas a essas artistas –, dirigido desde meados dos anos 1990 pela atriz Ângela Leal, filha de Américo e mãe de Leandra.

A atriz e diretora acredita que “o corpo da travesti é uma obra de arte. Tem toda a questão de se moldar, de se montar. Um pé na ficção, outro no real. E o valor artístico transcende a sexualidade”.

Divinas Divas vai promover o reencontro de decanos da arte de ser travesti no Brasil, como Rogéria, Valéria, Jane Di Castro, Camille K, Fujica de Holliday, Eloína, Marquesa e Brigitte de Búzios. “Com a decadência das vedetes do teatro de revista, acabamos substituindo as mulheres. As pessoas iam por curiosidade e, lá dentro, encontravam talentos“, relembra Jane Di Castro.

Leandra Leal Divinas Divas
Leandra Leal e elenco de "Divinas Divas"

Hoje, depois de décadas de carreira, ela e as amigas são respeitadas pela classe artística e pelo público. Para a nova geração, esse mercado se mostra mais cruel. Nas palavras da cineasta Cláudia Priscila, essa crueldade é fruto de uma representação caricata das travestis e transexuais. “Isso é uma barreira social para que elas sejam vistas como artistas de verdade.”

Ela e o marido, Kiko Goifman, dividem a direção do documentário Phedra, que esmiúça um mito da noite paulistana, a transexual cubana Phedra de Córdoba. Atriz, bailarina e cantora, ela chegou a São Paulo no fim dos anos 1950 e brilhou nos bares e boates da Praça Roosevelt, região central da cidade. Hoje, é tratada como diva pela premiada Companhia de Teatro Os Satyros, na qual atua desde 2003.

Também com Kiko, Cláudia dirigiu o documentário Olhe pra Mim de Novo, que narra o cotidiano de Silvyo Luccio, transexual masculino, defensor do respeito à diversidade no sertão nordestino, terra marcada por forte conservadorismo e religiosidade. O filme motivou debates intensos no último Festival de Cinema de Gramado, em agosto de 2011.

Phedra de Cordoba Phedra
Phedra de Córdoba em "Phedra"

Desistir jamais!

Entre tantas histórias, algumas de sucesso, outras ainda em busca de reconhecimento, o grande sonho da atriz Maria Clara Spinelli resume o desejo dessas artistas. Ela quer interpretar uma mulher, sem que a transexualidade lhe seja um apêndice. Assim como Leandra quer fazer seu filme, pouco importando se os personagens são travestis ou transexuais, homens ou mulheres, anjos ou demônios.

Enquanto espera novos convites, para teatro, cinema ou televisão, Maria Clara se concentra no próximo personagem: dublará a borboleta Lúcia, em um longa de animação que deve estrear em 2012. “Ao que me consta, não é uma borboleta transexual”, diz, às gargalhadas, com o mesmo bom humor que existe em Rogérias, Janes, Leandras, Renatas e Cláudias – e que faz com que elas não desistam de sua arte.

Links:

Divinas Divas - http://dazacultural.com.br/divinas
Renata Peron - http://renataperon.com/
Os Satyros - http://satyros.uol.com.br/
Teatro Rival - http://rivalpetrobras.com.br/
Rogéria - http://estrelarogeria.com/

Fonte: Itaú Cultural

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