Por Pedro Sammarco Antunes *
Há padrões estabelecidos que respondem a uma determinada forma de organização econômica e social. O que nos importa é saber qual é o impacto que as normas de gênero têm sobre as travestis que atravessam a vida e atingem a velhice.
Seus corpos foram apropriados pelos saberes religiosos, jurídicos e científicos determinando como eles deveriam se comportar. O trajeto que descreverei a seguir não tem a intenção de estabelecer uma regra. No entanto, diante da bibliografia especializada consultada e dos relatos obtidos, pode-se perceber que os percursos e a dificuldades enfrentadas são parecidas para a grande maioria delas.
A exclusão da travesti já começa na família, justamente por não se adequarem às regras sociais impostas. O próximo desafio encontrado é a escola, onde são rechaçadas tanto pelos colegas quanto pelos professores e demais funcionários.
Saem de casa ou são expulsas. Encontram nas travestis mais velhas a referência para construir seu próprio modo de ser. Devido à dificuldade de encontrar emprego por causa do preconceito, aliado à baixa escolaridade, muitas acabam se prostituindo para sobreviver.
Para isso, precisam modelar seus corpos de forma quase que clandestina e arriscada, pois não contam com políticas públicas de saúde que as amparem. Tal modelagem exige altos investimentos em hormônios, silicones e cirurgias.
A condição de seres patológicos que são colocadas facilita que a sociedade não as veja como humanas e sim como seres abjetas. Em sua maioria, são consideradas aberrações, sujeitas a tratamento, punição ou até mesmo extermínio.
As que conseguiram driblar os riscos inerentes ao seu contexto existencial de marginalidade precisam adotar estratégias. Para isso, seguem um estilo próprio de existir. Não há como generalizar sua forma de lidar com as adversidades da vida. Cada uma terá seu jeito único. Além de ter sobrevivido, chegar à velhice como travesti é sinônimo de referência, exemplo e alerta para as mais jovens.
Após as revoluções sexuais ocorridas na metade final do século XX no mundo, os conceitos de família e gênero sofreram profundas transformações. A travesti passou a ter mais espaço. Saiu da clandestinidade e começou a se prostituir nas ruas dos grandes centros urbanos. Como prostitutas, galgaram espaço nos grandes centros até chegarem ao exterior onde ganham muito dinheiro em curto espaço de tempo.
Quando não podem mais viver da prostituição, muitas se tornam locatárias de quartos ou imóveis que possuem. Outras se tornam militantes, cabeleireiras, manicures, esteticistas, costureiras, domésticas, cozinheiras, artistas, comerciantes, bombadeiras, "mães" das mais novas, ícones e cafetinas. Se isso não acontece, podem morrer logo, acabar na miséria, viver da caridade de alguém, em um asilo qualquer ou até mesmo se tornarem moradoras de rua.
Conhecer suas trajetórias de vida possibilita identificar quais são os pontos mais críticos onde não há qualquer amparo existencial. Travestis são grandes improvisadoras, visto que vivem em um contexto frágil, vulnerável e violento. Precisam inventar suas vidas de forma original. Como não "existem" perante a lei, estão sujeitas a todo tipo de violência e aniquilamento.
É preciso haver políticas públicas que as amparem, começando pela família e escola. Depois necessitarão de políticas de saúde que as auxiliem em seus processos de transformação corporal para que não tenham que se arriscar clandestinamente com silicone industrial e ingestão hormonal desregrada. Em seguida está outro grande desafio: sua profissão e meio de sobrevivência. É preciso haver ocupações onde não precisem se arriscar. E se assim for, que seja por escolha e não por ser a única forma de sobrevivência.
Por fim, as políticas públicas continuarão amparando suas velhices, pois se adequarão às necessidades especificas de cada travesti que envelhece. Embora sujeitas aos mecanismos de controle, as políticas públicas darão reconhecimento, direitos, deveres, proteção e condição de existência para as travestis. Existir por meio de políticas públicas, as retira da situação de marginalidade, violência e invisibilidade. Vemos que o assunto é muito complexo e que há muito ainda o que ser feito. Convido todos os pesquisadores e interessados nesse assunto a continuarmos esse trabalho gratificante e desafiador.
* Pedro Paulo Sammarco Antunes é graduado pela Faculdade de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie (2002) e mestre em Gerontologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2010). Obteve também os títulos de pós-graduação lato-sensu em Sexualidade Humana pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (2008) e em Gestalt-terapia pelo Instituto Sedes Sapientiae (2004). Tem experiência na área de psicologia clínica com ênfase em sexualidade humana e é colunista da revista G Magazine desde 2008. E-mail: pedrosammarco@hotmail.com. Link para o Mestrado Online: Clique Aqui.
** Na foto, o escritor, ator e modelo inglês Quentin Crisp (1908-1999). Em 1968, ele publicou as suas memórias "The Naked Civil Servant", que trouxeram corajosamente a público as suas fortes convicções sobre a homossexualidade.
Fonte: A Capa
Fonte: A Capa
Um comentário:
Excelente texto de Pedro Paulo Sammarco Antunes. Parabéns pela divulgação.
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