A Travesti fala de si

Identidade, Reinvenção Corporal e Silicone

Por Carlos Porcino

corpo
"...não nos esqueçamos que basta inventar

novos nomes, novas apreciações e

novas probabilidades para criar

pouco a pouco novas coisas."

Nietzsche

A presente reflexão situa-se no campo de estudos sobre o corpo, de forma mais específica no que tange as modificações corporais das quais se utilizam "as travestis" para "fazer" ou "bombar" o corpo, com o objetivo de efetuarem alterações e modificações corporais buscando se tornarem mais femininas. Com isso, desafiam a biologia e descobrem que o futuro do corpo está atrelado às modificações corporais, e que estas são possíveis de serem feitas com os avanços da ciência e a descoberta de novas técnicas que a cada dia possibilitam acrescentar o "que falta", ou a retirar que está em "em excesso".

O jogo da travesti é o jogo da conquista, por isso, ela constrói seu personagem pensando sempre no outro, nesse sentido, o conceito de corpo construído se aplica plenamente ao corpo da travesti, onde uma das mais importantes dimensões de sua vivência é a dimensão pública (OLIVEIRA, 2007). O seu corpo é construído com a finalidade de tornar-se um espetáculo, com a finalidade de atrair o olhar do outro.

O corpo humano é socialmente concebido, e os discursos e significações referentes a ele têm como objetivo a criação de um campo de códigos comuns capaz de permitir que os indivíduos reconheçam uns nos outros aspectos definidores, ou seja, aspectos que permitam que se construa uma concepção a respeito do outro. O corpo, assim como a forma que os artifícios usados sob o seu suporte servem para comunicar à sociedade com qual grupo ou tendência o indivíduo se identifica. No grupo das travestis isso não é diferente. Para que possam transitar nesse grupo se faz necessário o domínio de alguns códigos que permeiam entre si. Tais códigos trazem sempre como referência o sexo feminino e palavras de origem iorubá, para facilitar o diálogo entre si, sem que transeuntes e clientes entendam sobre o que falam.

A identidade travesti

Para Silva (1993), na experiência travesti, o masculino emerge como um abandonar-se à plena maturação do natural, à plena manifestação da natureza em si. Logo, o feminino também assim emerge. As travestis preferem não se definirem nem se auto-classificarem. Preferem ser o fator desordem nas trocas simbólicas entre identidades sexuais.

As travestis para Denizart (1997) não buscam imitar a mulher, mas que inventam um novo feminino. Sendo assim, é possível concordar com o mesmo quando ele afirma que isso não é tudo, pois de acordo com Simone de Beauvoir (1980) não se nasce mulher, torna-se uma. Dessa forma, é interessante ressaltar o que a anatomia não é o destino, haja vista, que as travestis descobriram a prótese como o futuro do corpo, há muito tempo (DENIZART, 1997).

Hall (2001) afirma que a identidade é construída ao longo do tempo, estando sempre em processo e sempre sendo formada e para Benedetti (2005), as travestis percebem o corpo não apenas como atributo social, mas suas verdadeiras identidades sociais, pois este processo faz parte inclusive da sua formação enquanto pessoa, como pode ser observada na fala de uma informante,

[...] uma travesti não é apenas o que muitos pensam… se vestir de mulher… é muito mais do que isso. É inclusive oferecer algo prá um homem… que ela não terá como dar. (Informante 1)

[...] travesti é… é aquela forma mais parecida de pensar, de agir, de se comportar e fazer tudo que uma mulher faz.(Informante 2)

Na construção da sua identidade os gêneros masculino e feminino se interpretam, em virtude do ator ser socialmente capaz de conviver com a realidade utilizando adereços e roupas femininas.

A trajetória de modificação do corpo da travesti tem inicio na homossexualidade, se aproximando da feminização, e que em um percentual elevado é intolerável para a família e para o ambiente de trabalho, que na maioria das vezes a demite e a exclui. O que lhes restam como alternativa para sobrevivência? A rua? A prostituição? São, enfim, os poucos meios que dispõem para viverem e se manterem.

Para algumas travestis, a aventura da pista não deixa de ser excitante, porém, tem suas crises de desespero e angústia, relacionadas essencialmente como "azar" na rua. A rua é também uma diversão, mas ser travesti é uma opção sofrida, o tal fato pode ser confirmado com o nosso entrevistado.

[...] Prá mim é a discriminação, esculhambação na rua, baixaria, mandam tomar vergonha [...] vai veado tomar vergonha [...] vai ser homem [...] olha o veado [...] olha o travesti [...] hum, hum essas coisas [...] Quando a gente entra no mercado, o segurança vai atrás da gente [...] vão atrás da gente achando que a gente vai roubar [...] tudo isso porque a gente é travesti [...] já passei por muito disso! (Informante 1)

travesti
Reinvenção corporal e silicone

De acordo com pesquisa realizada por Benedetti (2005), o silicone é comumente utilizado pela travesti que se propõe a construir um novo corpo, e muito utilizado por aquelas que desejam obter modificações no corpo de forma mais rápida. Deve-se considerar que a decisão para sua utilização seja feita com prudência, bem como a reflexão em torno da decisão.

A construção do corpo não é feita apenas com o silicone industrial, mas também, com o uso de anticoncepcionais administrados por via oral e intramuscular. Com base nas informantes, os mais utilizados são: uniciclo, perlutan, estradiol, premarim, entre outros. Observado na seguinte fala,

[...] Eu comecei com muitos e muitos hormônios [...] Gestadinona, Anaciclin que são comprimidos [...] Neovilar, Microvilar, Nordete, Diame, [...] Perlutan e outros [...] injeções de vitaminas [...] Rubranova, Citoneurin. (Informante 4)

Segundo o “Manual de Recursos e Diretório – Direitos Humanos” editado pela Associação Internacional de Gays e Lésbicas – ILGA (2002), as pessoas travestis geralmente estão desempregados, estão impedidos de encontrar trabalho ou de formar uma família, posto que a sociedade rechaça categoricamente este "corpo de mulher com nome de homem". Passam então, a serem consideradas como anormais, sendo expulsas dos caminhos ou formas de integração social. Frente a essas e outras dificuldades, o comércio sexual aparece como uma alternativa possível para a sobrevivência. Nesse sentido, a própria marginalidade da categoria travesti se repete como círculo vicioso que só será rompido com a oferta de oportunidades das políticas públicas de forma igualitária para esta população. Considerando que a discriminação que afeta essa categoria, obrigam-nas a viverem à margem e não resolverá sua situação de marginalidade.

Convém afirmar nesse sentido que somente através de uma cultura com base nos Direitos Humanos, e uma cultura democrática de respeito a diversidade cultural, é que existe a possibilidade de construirmos uma sociedade integrada e justa. Esse é requisito básico para superar a marginalidade que geralmente afeta a população travesti.

Referências:

BENEDETTI, M. R. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis .Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

DENIZART, H. Engenharia erótica: travestis no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

HAAL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 6.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

Manual de Recursos e Diretórios – Direitos Humanos. Associação Internacional de Gays e Lésbicas – ILGA. Curitiba, 2002.

OLIVEIRA. Neuza M. Damas de paus: o jogo aberto dos travestis no espelho da mulher. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1984.

PORCINO, C.A.; LIMA, D.S. A percepção das travestis que (re)inventam o corpo na cidade de Salvador acerca do envelhecimento. Salvador, 2007, 61 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Psicologia). Faculdade de Tecnologia e Ciências, Salvador.

SILVA, H. Travesti. A invenção do feminino. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993

Fonte: UNISex - Núcleo Universalidade e Diversidade Cultural

5 comentários:

Anônimo disse...

Texto muito interessante. Parabéns pela forma humanizada e respeitosa que o autor se coloca em prol das trans.
Marcos Araújo

Anônimo disse...

Olá,
Seu blog está muito legal!
Tem outro material desse mesmo autor sobre "A percepção das travestis na cidade de Salvador em torno dos riscos no processo de reinvenção do corpo com o uso do silicone industrial" na Revista ATLASPSICO - paginas 6-14 (http://www.atlaspsico.com.br/Revista_ATLASPSICO_11.pdf)

Tito Melo disse...

Gostei muito desse texto. Parabéns.

Anônimo disse...

sou trans desdos 15 tnhu 17 mas acho q hj as coisas estao bem melhores para nos trans ,moro no litoral de sc e as trans sao respeitadas tenhu amigas q trabalhao em hospitais ,lojas etc ,mas ainda a discriminalizacao .bjus .

Anônimo disse...

Sou trans também e tenho 31 anos. Gostei muito deste material. Algumém tem o contato do autor?
Manily Vision